segunda-feira, 25 de outubro de 2021

As raças

 

Já há muito tempo que reflito e debato sobre o despovoamento, a desumanização e a desertificação territorial. Também já há muito tempo que, num desses primeiros debates, alguém me perguntava se estes fenómenos só têm aspetos negativos. E nesse debate, há muito tempo, respondi espontaneamente algo que depois tenho reiterado – o isolamento conduz à definição das raças.

 


 

Na altura, como agora, estava a pensar nas raças caninas. Castro Laboreiro, Fila de São Miguel, Serra da Estrela, de Gado Transmontano, Serra de Aires, Rafeiro Alentejano, etc – todas estas raças estão profundamente definidas pelo desenvolvimento genético apurado num contexto ambiental – mas também sócio-cultural – próprio. Em comum – esses contextos ambientais e sócio-culturais tinham isolamento geográfico (visto como uma dificuldade acrescida das comunidades humanas residentes estabeleceram fluxos de contactos com comunidades de não-residentes). Em consequência, o padrão genético dos cães ia ficando concentrado, geração após geração, em determinados caracteres, vistos como os mais adequados à sobrevivência dos indivíduos caninos mas também como os mais apropriados para o interesse dos criadores/comunidades humanas endógenas.

Bem sei que estão a pensar que tal analogia zootécnica se poderia aplicar antropologicamente. Portanto, comunidades humanas isoladas/fechadas, quase endogâmicas, correm o risco maior de definição de caracteres específicos. Esse exercício seria demasiado óbvio e em nada rigoroso para os meus amigos que tenho em melhor conta.

No entanto, o isolamento hoje já não se mede como antes. Antes, havia quem nascesse e morresse na Brandoa, na Amadora, e nunca tenha chegado a Sete Rios. Ou quem tenha nascido e morrido em Gache e nunca tenha visto o Terreiro do Paço. Ou então – caso verídico, este – quem tenha nascido no sopé do vulcão adormecido do Faial e nunca tenha visto o mar. Mas hoje o isolamento vive-se mais na limitação dos grupos com que se contata – alguém que só ouve pessoas da sua classe social, da sua confissão religiosa, da simpatia clubística, do seu partido político é alguém muito isolado. Alguém que só fala para pessoas da sua classe social, da sua confissão religiosa, da simpatia clubística, do seu partido político é alguém muito isolado. Alguém que só debate com pessoas da sua classe social, da sua confissão religiosa, da simpatia clubística, do seu partido político é alguém muito isolado. Alguém que só dá razão a pessoas da sua classe social, da sua confissão religiosa, da simpatia clubística, do seu partido político é alguém muito isolado. Finalmente, alguém que não partilha visões com pessoas de outra classe social, de outra confissão religiosa, de outra simpatia clubística, de outra universidade,  de outro partido político, de outra formação académica é definitivamente alguém muito isolado.

Isso faz dessas pessoas uma raça? Não, mas faz deles os novos racistas.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

O dia que virá depois

 

Ao longo da minha carreira, tenho visitado inúmeras academias. Obviamente, além das instituições de ensino superior portuguesas – que praticamente conheço na larga maioria – refiro-me também a um número elevado de academias estrangeiras. No entanto, fazendo-o a convite delas para lecionação de unidade curriculares de Mestrado ou de Doutoramento ou na participação em Congressos ou em Seminários, devo desde já fazer uma correção. Uma academia não é de nenhum país, pois o trabalho desenvolvido por um académico visa romper as fronteiras e aspirar ao bem de todos. Assim, um trabalho de um investigador em Portugal promove, sem dúvidas, o bem-estar de comunidades na Índia e o trabalho de um investigador no México, mais cedo ou mais tarde, trará consequências para um residente em Portugal. Portanto, será sempre contranatura ou simplista condensar uma academia a um local, a uma época, a um conjunto de limites. O trabalho de Pedro Nunes possibilitou também que o homem pisasse a lua assim como o de João de Barros que Fleming descobrisse a penicilina.

Outra ideia que desfaço nos meus alunos logo nas primeiras aulas refere-se ao conceito de uma “Universidade grande” ou uma “Universidade pequena”. Uma Academia – enquanto comunidade de cidadãos com funções simultâneas de investigação, ensino e desenvolvimento envolvente – não é grande ou pequena. Grande ou pequeno são palavras adjectivas que apelam à densidade de massa, portanto de matéria quantificável. Uma Academia reúne – não tanto massa crítica – mas sobretudo visões sobre a Ciência, sobre a Explicação do que nos envolve. Uma Academia será assim mais próxima de um parlamento, de uma ágora, do que de uma masseira. E como aquilo que nos envolve não pára de se desenvolver, as visões mais justas são visões de mudança, de crítica sobre as visões do passado que não explicam de modo suficiente o tal mundo á nossa volta.

Logo, dizer-se que uma Universidade é grande ou é pequena servirá para comparações mesquinhas, de assuntos mesquinhos. Uma Universidade ou é Academia ou não o é. E para sê-lo não está contingente a espaços ou a tempos. O trabalho dos seus académicos – tantos que nos legaram o melhor de hoje em gabinetes que consideraríamos modestos senão míseros e em instituições sem metade das condições que hoje exigimos para um café – é mais ou menos conseguido na medida em que as mulheres e os homens dessa academia o fazem com a paixão de romper os limites, as amarras, as prisões. Uma Universidade é uma Academia quando, mais do que números de alunos, mais do que rankings de publicações ou mais do que mediatização dos seus produtos, trabalha em prol do homem e da mulher que vivem por perto ou que vivem nos antípodas, em prol das comunidades de amanhã e em prol do conhecimento dentro de dois séculos.

Porque mais importante, na Ciência como na Vida, do que a vaidade dos que passam hoje é termos a certeza que o Amanhã será melhor. E para isso plantamos aquela tamareira que só aproveitará aos netos dos bisnetos. Levando-os a plantarem mais tamareiras em prol do dia que virá sempre depois.


O meu voto

1.

Um homem presente, num lugar, exerce só por si uma força enorme! Um homem sentado, um homem de pé, com o olhar sumido algures ou preso além, com o olhar vivo ou mortiço, é sempre uma força enorme! A presença de um homem muda tudo à volta. A presença de um homem e de uma mulher transforma. A presença de vários – desde poucos a muitos – revoluciona. Ainda que mudos. Ainda que presos. Ainda que só respirem. A presença intimida, acolhe, apoia, eleva, humilha, constrói ou paralisa. Por isso, quando voto, voto para que os escolhidos pelo meu voto estejam presentes. Quero-os presentes. Como eu estaria se eles votassem em mim!

 

2.

Em democracia, alguns ficam eleitos mas muitos não. Portanto, podemos pensar que, ainda exista uma base proporcional na distribuição dos lugares, são mais/muitos mais os que não foram eleitos para aquelas funções elegíveis do que os eleitos. Assim, podemos referir que a eleição e a causa focada foram interessantes pois neste jogo das cadeiras os que se sentaram são menos do que os que ficaram de pé. No entanto, as assembleias deliberam e os mandatados executam. Se um pai não educar o filho, quem o educará? Se as Assembleias não regularem a vida comunitária e fiscalizarem os mandatados com funções executivas, como estes poderão ser guiados? A visão crítica corrige, a visão construtiva estimula, a visão política decide. As três são necessárias em todos - sejam eleitos ou não-eleitos. Abster-se de ter voz é pior do que não a ter – pois o que se abstém decidiu desinteressar-se, o outro quebrou o silêncio e assim – como em tantas vezes na História – fez do Mundo algo mais Belo e Melhor!

 

3.

O princípio da maioria (princípio de Condorcet) mostra que muitos a decidir decidem com menos erro. Portanto, um milhão de votantes decide melhor do que dez votantes. No entanto, tal conclusão impera depois de duas assunções – que cada um decida mesmo bem e que decida com a melhor informação. Caso contrário, o voto das maiorias pode levar a decisões terríveis, ao despotismo, ao fanatismo pelo líder, à cegueira, ao atropelo do indivíduo e ao esvaziamento de cada pessoa.

 

4.

O resultado de uma eleição é uma coisa séria. Que não é para miúdos. Miúdos que choram quando perdem, desesperados, ou que são estupidamente insolentes e arrogantes quando ganham. O resultado de uma eleição deve ser respeitado, interpretado e bem compreendido. Quando os outros vão em sentido contrário ao meu, das duas uma – ou eu vou errado ou vão eles. Quando alguns vão em sentido contrário ao nosso, devem ser respeitados. Se calhar não sabem o que nós sabemos e nós não sabemos o que eles sabem. Se calhar aprenderam a conduzir assim e por isso uns entram nas rotundas pela direita enquanto outros pela esquerda. Talvez o código deles seja diferente do nosso. No entanto, do debate de todos, percebemos melhor aquilo que se sabe em conjunto e um pouco melhor aquilo que cada um sabe em particular. Muitas vezes um homem só estava mais correto que uma multidão – desde profetas a visionários. Nalgumas vezes, inclusive, a mesma multidão linchou, calou e evaporou o homem só. Muitas vezes a maioria da multidão decidiu mal. Mas uma coisa a multidão tem de belo – divide a culpa do que correu de mal por mais gente do que quando se decide mal com poucos. Por isso, quando se segue o rebanho, arrisca-se menos quando saímos dele. E no entanto, quando a raposa vai aos galinheiros, caça por último os que dormiram fora do ninho.

 

5.

Portanto, se já decidi a minha caneta e se já decidi o meu voto, sou um homem satisfeito! Porque o dia depois de amanhã não me assusta, não me surpreenderá nem muito menos me inquietará. Desde há milhares de anos que há eleições. Biliões de votos entretanto se dissiparam na espuma dos dias. Braços no ar, vozes expressas, pés batidos, cruzes apostas em madeiras ou no papel, bolas retiradas de tômbolas ou passos dados nalgum sentido – todas estas expressões se dissiparam na espuma dos dias. E o melhor de todas elas é que todos os eleitores voltaram costas com a certeza de que o seu voto foi algo bom. Apesar de etéreo. Apesar de ser um num trilião. Mas foi uma semente que caiu à terra. E isso é sempre algo bom.