quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Reis na República das Bananas

 


 

 

 

Assim como a escravidão foi o sistema laboral dominante em três quartos da história civilizacional, a monarquia foi o regime dominante em período próximo. Ainda que os continentes não comunicassem, ainda que as culturas fossem profundamente endógenas, a ideia natural de um rei hereditário, algo herdada do evolucionismo biológico, foi algo que a espécie humana adoptou para regular as comunidades.

O debate entre regimes republicanos ou monárquicos (e dentro destes entre absolutistas/teocráticos e constitucionalistas) é já longo e não o vou aqui espraiar. No entanto, se uma das grandes virtudes era a da preparação dos aristocratas para a tomada de decisão – desde o berço que uns eram preparados para reinar e outros para serem governados – uma das grandes limitações prendia-se com a aleatoriedade genética que acabava por prender os eleitos a casamentos políticos, ao fardo do governo, e à herança da antipatia da turba popular quando eram herdeiros de déspotas pouco iluminados.

Mas durante milhares de anos a espécie humana pareceu aceitar bem esta herança cultural. Uns nascem para reinar, para viver, para dominar, para reproduzir. Outros nascem para serem governados, para sobreviver, para pedir, para consentir. Se é verdade que todos temos como antepassados 5 a 10 por cento dos eleitos aristocráticos, também temos de massa genética entre 90 a 95 por cento de servos da gleba.

A polémica em torno da vacinação de uns em detrimento de outros ressuscitou estes fantasmas na República Portuguesa, território milenar que em 90% da sua idade foi um Reino. Curiosamente, a menos que a nobreza fosse generosa (e havia também nobreza generosa) e que o clero local fosse ativamente assistencial (também o houve), a maioria dos servos da gleba contentava-se com a pobreza da terra consentida pelos enfiteutas e rezava para que o senhor local não abusasse em demasia dos seus poderes de patrão-alfa a macho-alfa.

Mas, quando uns, os mais débeis correm o risco de ficar sem vacinas porque outros – os mais nobres – ficam à frente, pergunto-me quais as razões que imperam nesta luta pela sobrevivência. Serão eles os mais bonitos que importa preservar para a espécie não degenerar? Serão eles os mais ricos que importa preservar para que o progresso não estiole? Serão eles os mais cultos que importa nutrir para que a civilização não se perca? Serão eles os detentores de ‘pedigree’ para nos garantir prémios nos concursos de beleza canina ou de pureza de raça ariana? Serão eles os nossos que importa defender para que os nossos genes perdurem? Ou serão eles os “nossos” que importa vacinar para que o nosso partido não se rompa?

Como acuso no livro “Economia do Esquecimento”, temos um país preconceituoso. Hoje, em 2021, descobrimos que as élites nos andam a aldabrar desde 1910 – a Monarquia continua, a Aristocracia reina, pois enquanto uns governam, outros se governam. Enquanto uns se servem, outros são servidos. Resta o resto da maralha à espera dos despojos enviados pelas costas abaixo do castelo.