Começo este texto como o terminarei – se os meus Amigos o desejarem, partilhem estas linhas à vontade.
Os
números da pandemia do Covid19 dispensam os meus comentários que
durante mais de 150 edições do “Diário de Guerra” foram partilhados com
centenas de leitores assíduos. No entanto, debaixo de tantas leituras
tão controversas, de tantos estudos, “estudos” e ‘estudos’ publicados,
divulgados, comentados, encomendados e escutados, tenho de partilhar a
história de um amigo e do seu filho testado à Covid19. A história deles
ajuda a explicar como quando o Sistema funciona como está a funcionar
contribui mais para a proliferação da doença do que para a sua
continência. Porque, quando o Sistema funciona mal, para um cidadão,
para a sua família, para as suas expectativas e, sobretudo, para o seu
apoio, outros cidadãos, outras famílias, outras expectativas e outros
apoios deixam de considerar o referido Sistema. E quando assim é, por
mais repressão em ameaça, é o vício no Sistema que alimenta mais o
vírus.
O filho do meu amigo acordou numa terça-feira com sinais
associados à mono-doença dos nossos dias: dor de garganta, dor de
cabeça, sensação de febre e aparente dificuldade em respirar
normalmente. A esposa do meu amigo, mãe do jovem, ligou para o famoso
número do Sistema 808242424 (deveria ser do SERVIÇO Nacional de Saúde,
aliás um marco histórico de Portugal, mas é cada vez mais uma figura do
SISTEMA). Poderia ter ligado para uma clínica privada ou para um médico
no sector privado. Mas ligou para o famoso número. A família do meu
amigo esperava que o Sistema fosse Serviço, que providenciasse uma
consulta prévia. Mas o Sistema disse-lhes para irem para a porta de um
Centro de Saúde, num início de tarde, chuvoso e frio. Quando lá chegaram
foram informados de que aquele espaço não era o espaço que o Sistema
tinha localizado, pois as funções de triagem tinham sido deslocadas para
outro espaço, na outra ponta da cidade. Foram para a outra ponta da
cidade na hora de ponta que é qualquer hora de almoço. Quando lá
chegaram, novamente a portaria a céu aberto, novamente filas de espera,
com outros utentes, cidadãos mascarados, ansiosos, doentes ou
adoentados. Indicaram-lhes novo espaço onde esperaram duas horas para
serem atendidos. Realizaram o teste por zaragatoa ao jovem, ainda menor,
sem deixarem a mãe – acompanhante, acompanhar o filho. Adultos
desconhecidos, mas do Sistema, pediram o número de telemóvel ao jovem
adoentado que cedeu e que confiou. Regressaram à casa com paracetamol,
ibuprofeno e anti-histamínico. Viram-lhe a garganta? Nada disso,
auscultaram-no ao longe, talvez exigência protocolar, talvez cansaço ou
despacho. Isto foi na terça-feira.
No dia seguinte, quarta-feira, o
jovem não melhorou com paracetamol, ibuprofeno e anti-histamínico. Pelas
14 horas, a família, naturalmente ansiosa, recebe um telefonema do
Sistema. O teste tinha dado ‘Inconclusivo’. Era necessária nova
zaragatoa. Estavam disponíveis? Sim, estavam todos disponíveis,
recolhidos numa pré-quarentena de quem é responsável e acredita que
estando infetado pode infetar, com os compromissos todos suspensos. Nova
testagem, novo regresso a casa, novas portas encerradas, a ansiedade a
aumentar, o estado do jovem sem melhorias com paracetamol, ibuprofeno e
anti-histamínico.
A seguir a quarta-feira, ainda que em eras
pandémicas, vem a quinta-feira. Como os resultados do primeiro teste
tinham demorado cerca de 25 horas a serem comunicados, a família do meu
amigo esperou 24, 25, 30 horas por um telefonema da Unidade de Saúde do
Sistema coletor. A tarde de quinta-feira terminava, o estado de saúde do
jovem tinha estacionado, o clã recolhido à espera do telefonema
libertador ou definidor. Nesse fim de tarde de quinta-feira, o telefone
de casa tocou. Era do Sistema. O Sistema pedia que se visitasse um
‘site’ e que o jovem queixoso introduzisse informações várias sobre o
seu estado de saúde, desde se tinha tosse, febre, dificuldade em
respirar, etc etc E resultado da testagem? O Sistema respondeu – Não
temos… mas o prazo normal vai até às 48 horas após a coleta. A família
do meu amigo resignou-se à espera.
Sexta-feira houve um telefonema de
manhã por parte da Unidade de Saúde do Sistema coletor. A família do
meu amigo correu para o telefone. E uma voz, uma voz do Sistema,
colocou-os logo em sentido, como as vozes do Sistema sempre fizeram ao
longo da História: “Como estão?” Estamos à espera. E a voz sentenciou…
pois, mas não temos aqui o resultado. Quem tem? O Sistema, afinal sem
ser omnisciente, não sabia. Talvez vá parar ao Médico de Família…mas ele
também ainda não o tem…
Veio o Sábado, veio o Domingo. Debalde, o
meu amigo e a mulher ligavam para a Unidade de Saúde do Sistema mas o
Sistema não trabalha ali aos fins-de-semana. Silêncio. Por vezes, o
silêncio do Sistema é mais aterrador do que a sua prepotência. Tantos
combatentes das ditaduras o sabem e o contam. Quem faz este silêncio?
São os do Sistema ou os que o combatem? Ou é o próprio Sistema a
interrogar-se se ainda faz sentido.
Vidas suspensas há quase uma
semana receberam a segunda-feira num misto de angústia, indefinição,
raiva. Sim, porque nestas alturas o cidadão que tem dignidade sente
raiva, vontade de rasgar uma folha e escrever novo texto, aquela vontade
de pegar nos mesmos tijolos e dos muros fazer uma casa, algo belo,
indiscutivelmente algo melhor. Para ele e para os outros.
Era
meio-dia de segunda-feira quando alguém, talvez a Décima-Quarta voz do
Sistema, ligou. O segundo teste ao jovem – que entretanto melhorara com
paracetamol, ibuprofeno e anti-histamínico – tinha dado negativo. As
vidas foram regressando ao normal, lentamente, no meio de declarações
necessárias para os trabalhos e escolas do meu amigo e família,
entregas, algumas simpaticamente digitalizadas, outras nem
simpaticamente nem digitalizadas.
O meu amigo e família
confinaram-se, perderam dinheiro, ganharam cabelos brancos.
Aparentemente, a história aqui contada com duas semanas de atraso acabou
bem. Este pedaço de história nesta história louca maior que ainda nos
envolve com capítulos cujo desfecho desconhecemos ainda e que serão
lidos no futuro. Mas o meu amigo e família tiveram paciência,
responsabilidade, ou respeito. Se o meu amigo e família fossem outros
meus amigos e famílias, sem paciência para suspenderem vidas, negócios,
almoçaradas, turismo, beijinhos, abraços e outras cópulas sociais,
teriam saído para a rua, teriam continuado os seus negócios, até teriam
infetado outros no caso de serem positivos sintomáticos ou
assintomáticos. Porque muitos passam ao desrespeito quando não se sentem
respeitados. E, sem dúvida, o Sistema tem desrespeitado os cidadãos,
atribui-lhes as culpas todas sem perceber que muito dos contágios vem do
mau funcionamento de cada 'Sistema de Saúde' espalhado pelo mundo.
Querem
outros exemplos de como os sistemas corrompem? A evasão fiscal não é
filha da imoralidade dos contribuintes mas da corrupção do sistema
fiscal. A precariedade laboral não é filha da ganância dos empresários
mas da corrupção das leis do trabalho. O subdesenvolvimento não é culpa
dos nativos, índios ou indígenas, autóctones ou locais, mas dos sistemas
de distribuição de rendimentos nacionais e internacionais. Portanto, a
culpa é dos sistemas corrompidos, como aliás o Papa Francisco o acusa
amiúde.
Eles sabem que a culpa é do Sistema que deveria ser Serviço.
Que consome profissionais de saúde, que desumaniza muitos deles, que
esgota outros. Que faz de políticos figuras patéticas que querem
legislar e impor debaixo de tantos estudos publicados ao minuto de
sentidos tão contraditórios (o que também mostra a que ponto a Ciência, a
Medicina e a Academia chegaram, e escrevo-o sendo eu um Académico!)
Contei ao meu amigo a história do velho Joad, o Avô Joad, das Vinhas da
Ira do Steinbeck, que queria matar uma coisa abstracta chamada Mercado
que mandava noutra coisa igualmente despersonalizada chamada Banco lá
longe que mandava nos homens que desapossavam as terras dos pequenos
agricultores do Oeste americano na década de 1920.
Uma coisa é certa
– o Sistema, o tal Sistema – que um dia foi Serviço Nacional de Saúde,
que trouxe uma revolução social na democratização da valorização da Vida
a todos os cantos deste país, que foi de Pessoas e para Pessoas - será o
grande derrotado desta história no final. O tal Sistema impessoal,
longínquo, desapossado, desumano. E com ele, todos aqueles que lhe
ficarem colados. Será o nosso Darth Vader, que um dia já foi Jedi.
Se os meus Amigos o desejarem, partilhem estas linhas à vontade.
quinta-feira, 29 de outubro de 2020
===Quando o atual SISTEMA do SNS explica a pandemia===
sábado, 17 de outubro de 2020
Ricos, loucos e destemidos sem máscara
Sim, porque sois assim? – é esta a pergunta que metade da sociedade faz à outra metade que não quer andar ou usar máscara, que quer falar livremente nas esplanadas e dentro dos cafés, que quer mandar tantas restrições, até agora sem eficácia visível, às urtigas, ou aonde as haja.
Esta pergunta é respondida pelos governos europeus com mais repressão, com mais confinamento e com mais dúvidas e incertezas. Vamos fechar-vos em breve em casa, vamos obrigar-vos a correr mascarados para as compras, a ter aulas à distância, enquanto os hospitais – públicos e privados – conseguirem vazar as pressões de tantos utentes com necessidades de cuidados intensivos. Depois de mais uma vaga de repressão, em que usamos a sociedade como mais uma cobaia de ensaio, notaremos que sabemos cientificamente tanto em outubro como sabíamos em março ou em abril, dando espaços abertos, enormes e abertos, a teorias de conspiração, de oposição, de revolta moral e de resistência cívica. Parece que é isto que tantos governos, por esse mundo fora, nos dizem hoje.
No entanto, a Economia, enquanto ciência do comportamento, ajuda a responder a esta pergunta. Porque são assim? Porque uns roubam e outras ficam a ver? E porque uns matam enquanto outros são mortos? Porque uns corrompem e outros se deixam corromper? Porque uns ganham e outros perdem? A resposta é simples – porque assim escolheram. E enquanto ninguém nos mostrar que perdemos mais com as escolhas feitas do que ganhámos, continuaremos a apostar naquela casa na roleta, naquela terminação, naquele partido, naquela crença, naquela ideia. Uns roubam porque acreditaram que compensava roubar, outros mataram porque julgaram que nunca seriam sentenciados ou que nunca iriam para um inferno apregoado por outros. Uns corrompem porque acreditam que só assim conseguirão dar mais bem-estar àqueles que lhes são próximos, borrifando de desinteresse todos os outros. Uns escravizam porque acreditam que assim conseguirão mais feitos enquanto outros desprezam porque acreditam que assim se sentirão melhores. Uns mandam outros para campos de concentração porque assim terão uma sociedade mais limpa. Uns correm para o álcool para suportar isto tudo enquanto que outros pegam numa arma para estoirar de vez com este mundo. Fazem-nos porque são malucos? Não, fazem-no porque são racionais, julgando que o que fazem é bem feito. São assim, foram assim criados, transtornados ou formados? Talvez, mas fazem-no porque são tão racionais como um italiano na noite de 17 de julho de 1994 o foi, um dos italianos mais talentosos a cobrar grandes penalidades – Roberto Baggio – que decidiu atirar a bola para o ponto cego de um Cláudio Taffarel cansado quase 180 minutos jogados de uma final, para o ângulo das 13h. E esse italiano, com uma proporção alta de eficácia na cobrança de grandes penalidades, atirou para a bancada superior do Rose Bawl, dando o título a uma seleção canarinha que jogava com o cinismo dos transalpinos. Baggio acreditou que faria bem; passados oito segundos depois de ter recuado oito passos para iniciar a corrida de ensaio, percebeu que fez mal. Arrependeu-se? Talvez. Mas percebeu que tinha escolhido mal, que tinha arriscado e que tinha perdido.
Será que a repressão, as multas, a vigilância policial, ou a divulgação de vídeos nas redes sociais apontando infratores, desleixados e despreocupados fará com que eles coloquem as máscaras, com que se distanciem dos outros, com que não sejam agentes eventuais de contágio eventual? E sobretudo fará com que a brutalidade desta segunda vaga não gere mais incertezas, medos e complexos na outra metade? Baggio percebeu a desilusão. Uns podem até perceber infernos, mais tarde. Enquanto isso, eles aí andam – sem máscara, conversando, quase pornograficamente, com a alegria que nós quereríamos ter. Nessas alturas, lembro-me daquela frase do Adam Smith, em Teoria dos Sentimentos Morais, algo como “Como admiro os ricos, os loucos e os destemidos – porque mesmo que morram nos seus consumos, loucuras ou impulsos mostram-nos – a nós, os sobreviventes - que a nossa vida simples pode ser sempre um pouco diferente.”